Tragou, mas esqueceu.


Agora eu tinha um pedaço teu entre o meu punho e as extremidades dos dedos, pai. Olhava-te em uma pequena porção de tabaco. Seco, picado. Ali, enrolado em papel fino, frágil. Encaixei-te dentre os meus, medrosos e trêmulos, lábios. A cautela fazia-se presente na minha alma. Acendi-te no teu término. Tu, findando aos poucos em fumaça fedorenta, cheiravas covarde, podre. A emanação que era transmitida pelo ar, ofendia-me o frágil, e até inocente, olfato. Ah! Mas se tu soubesses o quanto sempre odiei este teu cheiro... Se entendesses o valor do meu por favor, quiçá eu não estaria arruinando o espírito montanha a baixo, aqui, com um pedaço teu entre os dentes, como quem tem muito p’ra falar, mas não se tem nenhum ouvinte. No mesmo instante em que pensei em mim, te traguei pela primeira vez. Cuspi, tossi. Teu gosto é ruim, amargo. Descia rasgando a delicada garganta. Canivetes de fumaça invadindo todo o meu corpo. Mas eu não iria malgastar a verdade, então te tragava com fugacidade violenta, dramática. Tragava o teu desprezo por mim. Eu, pedaço de tua alma, gotas de teu sangue, traços teus desenhados em minha face, trocada e esquecida inúmeras vezes por uma droga lícita. Tragava minhas lágrimas clamando por compaixão e atenção tua. Esperando que visses em mim uma esperança para o vício. Tragava minhas cartas, que por vergonha de falar na cara dura, no olhar sério, escrevia-as rogando por um ponto final de teu descontrole. Eu tragava a preocupação por tua saúde, que me perseguia em tempo integral. Tragava-me o coração dilacerado ao ver campanhas na televisão contra o fumo ou a verdade do mal que o próprio causava ao débil, e masoquista, ser humano. Tragava o seu desleixo, o seu esquecimento, a solidão que me causavas. Tragava a minha infância sendo aos poucos fragmentada. Eu tinha de crescer rápido p’ra entender esta tua paixão por algo de odor tão forte, sujo. Que, por incontáveis vezes, fora mais importante que teu próprio fruto. Eu também tragava, ali, o meu amor, maior pedaço de mim, que preteriste por um mísero cigarro. O meu cofre de criança singela que quebrei a fim de dar-te dinheiro, quando não possuías, para alimentar o mau costume, eu tragava. Tragava as fatigadas orações para um Papai-do-céu, para que Ele cuidasse de ti, já que eu não podia. Tragava os insultos impiedosos de colegas babacas sobre pessoas que tem costume de fumar, como também, as defesas árduas para defendê-las - pois dentre elas havia o meu pai- mesmo sem razão. Ávida eu sempre fui, mas no fundo era o desejo de teu bem estar que me fazia tão sôfrega. Tragava a ti, tragava a mamãe, tragava o meu irmão e as brigas que nós, a tua família, fazíamos para que largasse o tal Carlton - ou qualquer marca n'um imenso ardor desesperado. Depois de tragar agradeci a um Deus por ter ouvido e atendido minhas orações, por que depois de tantos anos de fumo, teus pulmões ainda estavam perfeitos. Depois de tragar dei graças a Deus, rezei nove Ave Marias e prometi ir à missa todos os domingos, ser um pouco mais do Senhor, por existir o estudo da genética e a própria afirmar que se teus genes não são propícios à doenças genéticas, nunca as terá. Depois de tragar abracei esta sorte, como quem tem a vida entre os braços. Mesmo que sendo só uma suposição, mas tudo dava a crer que doenças não seriam possíveis e tu poderias abusar até que a alma canse de brincar de paixão. Depois de tragar tive a certeza de ter um pedaço teu em minha alma, correndo entre minhas veias e bombeando o meu coração: gostei de te despender. É até gostosa a sensação que uma porção de tabaco proporciona.

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