À meia luz do céu nublado.


Ei, a nuvem ainda continua a chorar lá fora. Se fechar a janela ainda sinto frio. Se enroupar-me a pele pálida, quase sem vida, com cobertores, ainda sinto frio. A verdade é que antes de dormir olhei-me no espelho temerário e clássico que você, quando estava aqui, decidiu pendurar na parede. “A parede está sem vida”, você dizia. Que equívoco! Pois antes não havia um reflexo meu na dita cuja descorada. Na primeira vez em que olhei o meu reflexo, vi apenas uma garota. Quase desconhecida por mim, a não ser por seu sorriso inconfundível que se deixava, cautelosamente, brotar entre os lábios. Singela, doce, sem ambição alguma. Tímida demais para mostrar-se mulher nos traços que a desenhavam. Gostava de estar com os olhos na lua, de ter no olhar o brilho das estrelas que enfeitam o céu negro. Ali mesmo, em seu quarto, já fez mil projetos trágicos. Suicídios, vinganças sangrentas contra quem já a feriu na alma, rebeliões, casamentos; jurou por um Deus que se vingaria de modo fúnebre exemplar. E era como se bastasse uma brisa leve, morna, fresca e sem pressa para esboroar suas idéias sanguinárias. Sôfrega era, mas corajosa para ser, não. Para a garota no espelho eu digo “prazer em conhecê-la” ou “sempre fomos assim”? Então, decidi olhar-me uma outra vez. Preciso dormir era, mas ver-se nas respostas de suas próprias perguntas também. Na segunda vez em que olhei o meu reflexo, vi você. Que culpa eu tenho? Depois de você, às vezes, parece que não restou mais ninguém. Nem mesmo a mim. Foi uma pergunta que fez nossa história começar, mas que pergunta foi esta que fez tudo agora acabar? Outra viagem de negócios, outro motivo para ficar longe. E indo longe, longe foi. Eu não era boa o bastante, era o que você dizia. Talvez não fosse mesmo. Era limpa demais para a sua alma porca. Mas não o culpo por estar tão desfalecida agora. Um dia você foi tudo o que me fez ter o coração em sensação de chamas, sentir correndo nas veias o sentimento abrasado. Eu o amei, eu o adorei, eu o desejei, eu o quis. Mas você tinha lábia cruel. Fazia-me mentirosa em uma de suas promessas vazias de amor, por ser a única de nós dois a jurar a verdade. E então depois de vê-lo em meu próprio reflexo, enxerguei o meu presente. Senti a minh’alma presa n'um vidro polido e metalizado que refletia a invasão, pela janela entreaberta, da meia luz do céu desgostoso. Senti um frio tão forte, como quem está sentindo na pele e no fundo da alma a sensação de quando se tem febre alta. Senti a alma vazia, vi a lacuna detrás da pele. Deu vontade de sentar no chão, abraçar as pernas e esconder o rosto entre os joelhos. Ficar quietinha assim até desanuviar esta tempestade, que só sobrasse o cheiro de terra molhada. Mas não é tão fácil. Estou chovendo.

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